Pedagogia do quilombo

Para pesquisadora da Universidade Federal do Mato Grosso, legislação elaborada na primeira década dos anos 2000 foi avanço, mas educação escolar quilombola enfrenta problemas como formação de docentes, questões de infraestrutura e, atualmente, postura do governo federal 

[Por: Wir Caetano / Dabliê / NOTA PRETA]
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“É importante mencionar o ruidoso silêncio que envolveu o campo das políticas públicas, no tocante à educação escolar quilombola, e também à educação escolar da pessoa negra, no geral, historicamente”. É o que diz a professora Suely Castilho, doutora em Educação pela PUC/SP, que coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Quilombola (Gepeq) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

O silenciamento citado pela pesquisadora começou a ser reduzido há 10 anos, quando foi promulgada a Resolução nº 4/2010, que criou a Educação Quilombola como uma modalidade da educação básica. Já em 2012, era publicada a Resolução nº 8, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola.

Essas resoluções são desdobramentos de marco histórico anterior, a Lei nº 10.319, de 2003, que tornou obrigatório em toda a rede de ensino brasileira, do nível fundamental ao superior, “o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional” (como diz o texto legal), para resgate da contribuição negra ao país.

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A professora Suely Castilho, coordenadora do Gepeq [Foto: Gepeq/Rede social/Reprodução]

A professora Suely considera que “tais políticas merecem ser comemoradas, pois são consideradas como respostas às demandas das comunidades e dos movimentos sociais que as representam, os quais incansavelmente têm empreendido lutas por escolarização e outros direitos”.

No âmbito de seu estado, ela destaca a publicação das Orientações Curriculares para a Educação Quilombola, em 2009. Esse documento traz como “grande inovação”, conforme avaliação da pesquisadora, a criação de uma área específica de conhecimento denominada “Ciências e Saberes Quilombolas”, composta por disciplinas que abrangem práticas em cultura e artesanato quilombola, em técnicas agrícolas quilombolas e em tecnologia social. 

Entre a lei e o chão da escola

As políticas públicas elaboradas a partir da primeira década dos anos 2000, ao estabelecerem novos marcos educacionais, ativaram também novas demandas a enfrentar.

Entre os desafios a vencer, segundo Suely, está a “formação de professores que os capacitem para os pressupostos dos saberes contextualizados, defesa da identidade e cultura africana, quilombola, comunitária, desconstrução do racismo”.

De acordo com a pesquisadora, outro problema a ser enfrentado é a dificuldade, relatada por professores quilombolas, para acesso a materiais didáticos que os subsidiem nas discussões temáticas com os alunos.

Há, ainda, questões como ausência de internet, de biblioteca, equipamentos tecnológicos, laboratórios, qualidade de transporte escolar, condições das estradas ou aquavias e baixos recursos para merenda escolar.

Esses problemas, diz Suely Castilho, acabam por ser “impeditivos para que  as legislações sejam implementadas no chão das escolas da forma como sonham os docentes e estudantes, e da forma como merecem e lhes são de direito”.

Da academia ao quilombo

A necessidade de pensar os desafios da educação nos quilombos e procurar enfrentá-los levou Suely a fundar, em 2013, o Gepeq, que, nascido informalmente, foi integrado à estrutura institucional da UFMT três anos depois.

Multidisciplinar, multirracional e multiétnico, esse Grupo de Pesquisa, de acordo com a coordenadora, acolhe profissionais de diversas origens geográficas e étnicas. Suely destaca a representatividade de docentes oriundos e atuantes em escolas quilombolas do Mato Grosso, que estão integrados ao grupo como pesquisadores, mestrandos ou cursistas do projeto de extensão.

Desde 2019, a equipe do Gepeq tem realizado seminários temáticos e encontros de educação quilombola. Esses eventos são realizados nas comunidades e não em unidades universitárias, mas mantendo os protocolos das atividades acadêmico-científicas.

“Os membros universitários interessados é que se deslocam para a comunidade em questão. Esta estratégia foi pensada para garantir o acesso à formação de todos e todas as profissionais da educação que atuam nas escolas”, conta Suely.  Afinal, quatro das cinco escolas estaduais envolvidas no projeto do Gepeg são rurais e distantes da capital mato-grosense, onde estão localizadas as universidades.

Etnossaberes: cruzamento de passado e presente

[Estudantes trabalhando com atividade artesanal quilombola]
[Foto: Gepec – Rede Social/Reprodução]

Um dos pontos centrais da legislação relativa à educação quilombola e das práticas que o Gepeq busca consolidar é a valorização dos etnossaberes. “Estes considerados como o conjunto de saberes, dizeres e fazeres: o imaginário, as lembranças, as histórias, os mitos, os ritos, os costumes, o modo de construir suas tecnologias sociais, o modo de curar por meio de chás, garrafadas, benzimentos”, explica Suely.

O conceito de etnossaberes concilia herança histórica e sua recriação. “As ações cotidianas vividas pelos membros de uma determinada comunidade, sejam as ancestrais, repassadas oralmente das gerações mais antigas às mais atuais, ou aquelas recriadas, contemporaneamente”, diz a pesquisadora, compõem o saber das comunidades a ser valorizado na estratégia pedagógica.

“Quando defendemos que o currículo escolar necessita valorizar, contemplar tais saberes, estamos defendendo uma pedagogia quilombola decolonial (‘de questionamento dos conteúdos coloniais e colonizantes’), que leve em consideração os saberes, fazeres e dizeres locais, ancestrais ou recriados, como uma forma de valorização das identidades, culturas e histórias as quais foram suprimidas ou negadas pelos livros didáticos, ou outros registros oficiais ao longo da história”, destaca Suely.

Mas a tarefa de preservar e ampliar o legado quilombola tem enfrentado “inúmeros”  obstáculos atualmente`, segundo a coordenadora do Gepeq. Ela diz que “os desafios para implementar uma educação que atenda qualquer aspecto da diversidade humana não branca, não hétero, ou não burguês, por exemplo, se tornou muito mais desafiante em um governo, como o atual [comandado pelo presidente Jair Bolsonaro], que nega as diferenças e as necessidades específicas para não ter que atender tais demandas”.

Suely não poupa críticas também a Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, órgão responsável por políticas de preservação da cultura negra e reconhecimento das comunidades quilombolas. “Quando [essa entidade] tem à frente um presidente que nega a existência do racismo, que defende a ideia da escravidão benéfica ao negro, que questiona a importância de Zumbi, como símbolo da luta negra, não há de se esperar qualquer forma de avanço, lamentavelmente”, diz ela. E sentencia: “o presidente está fora do seu lugar”.

Instrumento musical de matriz africana
[Foto: Wir Caetano / Dabliê / Nota Preta]

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